fevereiro 15, 2024

Além do livro

  1. IDADE MÉDIA E MODERNIDADE

A Idade Média foi o período da História no qual se consumou a mescla de povos já romanizados com outros que irromperam pelas fronteiras naturais da parte ocidental da Europa desde a fase final do Império Romano. Em um período de aproximadamente mil anos, estruturaram-se em uma parte do mundo ideias, bem como formas de pensamento e de vida fundamentais para a civilização a que pertencemos. Entre as razões pelas quais a Idade Média atrai crescente interesse na atualidade está a de ela ser ponto de partida da evolução social e política que, sem grandes rupturas, resultou no moderno mundo ocidental.  A presente modernidade é mais medieval do que ela gostaria de assumir. Identificar e compreender as origens dessa evolução acidentada, mas não rompida, até os nossos dias pode ajudar ao entendimento de nosso próprio mundo, tanto individual como coletivo.

  • IMPORTÂNCIA E UTILIDADE DO ESTUDO DA IDADE MÉDIA

Um livro brasileiro sobre a Idade Média, antes de ter apreciado o seu conteúdo, deve responder às questões das fontes e das suas finalidades. Se não estão em nosso espaço as fontes materiais que lastreiam a pesquisa sobre esse período da História, como podemos estudá-lo? Se não houve uma Idade Média no Brasil, por que importa aos brasileiros conhecê-la?

Conhecimento e identidade são as respostas a essas perguntas. Uma sociedade diversa e complexa como a brasileira deve ter uma perspectiva própria em relação aos desenvolvimentos históricos, às instituições, aos acontecimentos, às formas de vida e pensamento, e também aos conhecimentos sobre esse período, dos quais ela se originou e derivou, imediata e mediatamente, do Descobrimento ao seu pertencimento ao Ocidente.

O estudo da Idade Média é importante pela estruturação do pensamento da civilização a que pertencemos; pela formulação dos instrumentos conceituais, literários e simbólicos cruciais para o conhecimento que produzimos; e pela transposição de formas de vida tipicamente medievais à América portuguesa.

A importância do estudo da Idade Média pode ser expressa em a Comédia, de Dante Aliguieri (1265-1321), talvez a obra mais lida e estudada, depois da Bíblia e dos evangelhos, na história do Ocidente (CARMELO, 1998, p. 14). Dando seguimento à tradição instituída por Santo Agostinho da introdução do elemento moral no conhecimento, oitocentos anos antes, Dante, ao estabelecer uma taxionomia de pecados e merecimentos vinculada a uma cosmologia, criou uma teoria do conhecimento cujos traços vão perdurar.

A Comédia é um grande enlace, no qual se combinam elementos poéticos, morais, éticos, religiosos e filosóficos, para cuja leitura são obrigatórias as referências literárias, científicas e simbólicas da Idade Média. Como assinalou Umberto Eco, só é possível “compreender o valor da luz no Paraíso dantesco”  (2004, p. 119) segundo as suas quatro propriedades fundamentais, claridade, impassibilidade, agilidade e penetrabilidade, levadas em conta as especulações filosóficas de São Boaventura, para quem a luz era uma realidade metafísica, e as de São Tomás de Aquino, que a considerava física.  

Quanto ao Brasil, Gilberto Freyre, ao identificar o sistema patriarcal como transregional (p.68), repetido em nossas distintas geografias, e apontá-lo como “principal elemento sociológico de unidade” (p. 62), lembrou no primeiro século de colonização os “castelos opulentamente feudais, como a casa-grande da Torre, na Bahia, ou a de Megaípe, e Pernambuco” (p.60) e dos traços feudais que esse sistema deixou em nossa sociedade, atenuados somente com a chegada de D. João em 1808 (p.106), mas que ainda a impregnavam na primeira metade do século passado (p.78).

Gonçalves Dias, no romance épico Guarani (1857), recorre a personagens simbólicos caracterizadamente medievais, como o senhor da casa-forte, o fidalgo D. Antônio de Mariz; a donzela objeto do amor cortês, Cecília; o herói-guerreiro, o índio Peri; e os turbulentos mercenários, na figura dos aventureiros chefiados por Álvaro de Sá.

Há que se lembrar ainda das irmandades,  como a de São Jorge, no Rio de Janeiro, em pleno século XVIII, da qual “faziam parte os oficiais de ferreiro e serralheiro, como cabeça de ofício e os de latoeiro, espadeiro e dourador como anexos à bandeira” (BONNET, 2009, p.61), à semelhança das guildas, as corporações de ofícios medievais.

No que diz respeito à sua utilidade, o estudo da Idade Média pode ser um amplo laboratório histórico em função da característica central do período: a busca de ordem na inexistência de instrumentos teóricos e meios práticos para implementá-la.

  • O LIVRO E ALÉM DELE

    O livro se inicia pela periodização da Idade Média, abordada nos capítulos 1 e 2, que tratam dos principais desenvolvimentos históricos da Alta Idade Média e das Idades Média Central e Baixa, respectivamente. Familiarizado com essa periodização, o leitor pode adentrar com mais facilidade nos temas propostos nos capítulos seguintes: ideias e pensamento; política e estado; conhecimento e tecnologia; economia ; guerra; direito e justiça; e formas de vida, até chegar ao objetivo síntese da obra, a Idade Média no presente, capítulo em que se apresentam a estrutura herdada e o pensamento adquirido do período medieval, os quais, combinados, conformam nossa contemporaneidade.

    Porém, há que se aproveitar essa oportunidade para a crítica, reflexão e expansão dos temas abordados no livro, particularmente em se tratando de um tão vasto, como a Idade Média, cujo estudo continuamente aprofundado deve se dar também pelo diálogo e complementaridade com obras que não constam entre as suas referências.

    A importância econômica da Idade Média pode ser extraída da citação do historiador da Antiguidade Clássica Moses Finley (1913-1986): “as elites cidadãs das cidades antigas, fossem de Atenas ou Roma, não estavam prontas, pelo menos em número suficiente, para garantir por si mesmas tarefas diretamente econômicas” (apud. BRESSON, 2010, p. 217). Finley pode ter exagerado ao afirmar que não havia economia ou mercado na Antiguidade, mas ele estava certo no que diz respeito à falta de uma classe especializada e dedicada às tarefas econômicas, algo que só surgiria na Idade Média, nas figuras dos mercadores, armadores, banqueiros, contadores, cambistas, prestamistas e artífices, por força dos processos de troca e interação ocorridos desde o Báltico até o Mediterrâneo, passando pelas rotas do Atlântico e através dos Alpes.

    Chamando a atenção para as continuidades que perpassam o período desde a Antiguidade, temos na historiografia medieval as obras de dois renomados historiadores, o alemão Karl Ferdinand Werner (1924-2008) e o irlandês Peter Brown (1935- ).

    Werner defendeu que “a nobreza sempre existira, a cavalaria também” (apud. PARISSE, 2010, P. 322), identificando uma continuidade desde a República Romana. Ele defendia a tese que o Império Carolíngio era constituído por antigos reinos, como Baviera, Alemania, Saxe, Francônia, Lotaríngia, Nêustria, Borgonha, Aquitânia, Provença (Ibid. p. 315) que mais tarde, no século X, deram origem aos ducados. Apoiado numa pesquisa sistematizada de nomes e posses que apurou os descendentes de Carlos Magno no século XI, ele concluiu que a nobreza medieval tinha suas raízes na época carolíngia, destoando de March Bloch que a via como resultado da cavalaria e entendia que os príncipes medievais eram uma continuidade da aristocracia carolíngia.

    O grande quadro no qual se pode apreciar a Idade Média pode também acomodar essas versões aparentemente inconciliáveis. Nas condições de desordem dos séculos IX e X, a aristocracia carolíngia reteve o controle nominal de grandes parcelas do antigo império, porém, para seu controle efetivo teve que se valer de um grupo social emergente, os cavaleiros pesadamente armados agrupados em bandos e se organizavam em comunidades que se defendiam localmente, dando início, a partir do final do século X, a uma rede de dependências a que se chamaria de feudalismo.  Segundo essa hipótese, a aristocracia, mais antiga, se mesclaria a uma nobreza de armas, nascida das demandas de segurança, para formar uma classe senhorial que o trabalho de Werner desvelou.

    O outro defensor da continuidade, o irlandês Peter Brown, ao estudar a periodização da Idade Média trouxe uma grande novidade com a proposição de uma Antiguidade Tardia que teria durado do século II ao VIII. A abordagem de Brown, centrada na história cultural e religiosa, introduziu a ideia de mudança de longa duração e, ao contrário de muitos historiadores, enxerga no período uma era de inovação e não de decadência. Assimilando críticas e sugestões de outros historiadores, Brown propôs uma divisão da Antiguidade Tardia em inicial (do século II ao V) e final (do século VI ao VIII), permanecendo,  no entanto, o debate aberto em torno da questão.

    Recentemente, uma grande novidade da historiografia mundial trouxe perspectivas inéditas e confirmou outras sobre a Idade Média. A obra de David Abulafia (1949 – ), “O Grande Mar: uma história humana do Mediterrâneo”, lançado em 2011 na Inglaterra e traduzido em 2014 para o Português, uma obra que está, sem dúvida, à altura de sua congênere consagrada, “O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico”, de Fernand Braudel (1902 -1985).

    Enfocando um Mediterrâneo mais restrito do que o de Braudel, nas palavras do autor, “a própria superfície do mar, seus litorais e ilhas” (2014, p. 17), Abulafia descortina um tempo muito mais longo, de um primeiro Mediterrâneo predominantemente pré-histórico (22.000 a.C. a 1.000 a.C.) ao último (1950-2010), no qual ele enfatiza a mudança ao longo do tempo. Na sua obra, Abulafia indica mudanças de longa duração que, no período que nos interessa, vão se dar com a desintegração no século VI da unidade romana do Mediterrâneo e o subsequente  colapso demográfico (p.259); com a revolução comercial do século XII, que abrangia desde as feiras da Champagne até o comércio marítimo de Gênova, Pisa e Veneza (p. 300); e com a vantagem tecnológica alcançada pela Europa Ocidental em relação ao Oriente em 1500 (p. 455). 

Um estudo sobre a Idade Média vai além dela. Ao oferecer uma reconstrução compreensiva daquela era, o livro merece uma leitura comparada com outras épocas, da qual poderá emergir a percepção das continuidades e rupturas ocorridas até os nossos dias. Como é a História.

REFERÊNCIAS

ABULAFIA, David. O grande mar: uma história humana do Mediterrâneo. 1a ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.

BONNET, Marcia C. Leão. Entre o Artifício  e a Arte: pintores e entalhadores do Rio de Janeiro setecentista. Tese de Doutorado. Secretaria Municipal da Cultura. Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2009.

BRESSON, Alain. Moses Finley. In: SALES, Véronique (Org.). Os historiadores. São Paulo: Editora Unesp, 2010. p. 209-224.

CARMELO, Distante. Introdução. In ALEGUIERI, Dante. A Divina Comédia: Inferno. São Paulo: Editora 34, 1998. p. 7-17

ECO, Umberto. Historia de la Belleza. Barcelona: Random House Mondadori S.A., 2004.

FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento urbano. 15a ed. São Paulo: Global Editora, 2004.

INGLEBERT, Hervé. Peter Brown. In: SALES, Véronique (Org.). Os historiadores. São Paulo: Editora Unesp, 2010. p. 393-409.

PARISSE, Michael. Karl Ferdinand Werner. In: SALES, Véronique (Org.). Os historiadores. São Paulo: Editora Unesp, 2010. p. 311-330.

TAGS:
Comments are closed.