BRIC (à brac)

Parece que só agora a sociedade brasileira começa a se dar conta do que seja BRIC, o grupo de países no qual o Brasil ingressou sem ter nada em comum com Rússia, Índia e China, e sem qualquer discussão séria sobre o seu significado e suas consequências. 

A utilização por Putin da XVI Cúpula dos BRIC para legitimar seu projeto de recriação do Império Russo pela guerra, a falta de credenciais democráticas de praticamente todos os seus membros e o monopólio chinês do poder econômico do grupo deixam claro que ele não fortalecerá o multilateralismo e muito menos o desenvolvimento e a segurança globais, pomposo título da declaração final do encontro realizado em Kazan, Rússia, entre 22 e 24 de outubro.

Ajuntamento de países sem qualquer nexo cultural, econômico e de vizinhança, tal como um bric-à-brac, além do mau gosto, o BRIC é velho. Trata-se de uma nova versão dos “não alinhados” dos anos 50 repaginada pelas viúvas de Bandung, os ideólogos saudosos da conferência convocada pelo ditador da Indonésia, Achmed Sukarno, que colaborara com os japoneses na Segunda Guerra Mundial.

Impulsionada pela hostilidade aos Estados Unidos, a Conferência Afro-Asiática de 1955 materializava o conceito terceiro-mundista em voga na esquerda francesa, segundo o qual a excelência moral estaria agora com as ex-colônias asiáticas e africanas, o proletariado planetário multirracial e multirreligioso que imporia uma nova realidade internacional pela “violência moral das nações em favor da paz”, segundo o próprio Sukarno, que talvez não estivesse consciente do quão trágicas se mostrariam suas palavras.

A conferência serviu como uma luva para líderes ambiciosos, porém incapazes de lidar com os problemas reais de seus países, subirem ao palco mundial como promotores de uma nova era de justiça e igualdade. A moral de Bandung era de anti-imperialistas com projetos antidemocráticos, que tinham um discurso externo bem diferente da prática interna e que criticavam um lado enquanto se calavam sobre o outro. 

Gamal Abdul Nasser, o novo líder egípcio, usou a teoria da conspiração ocidental em favor dos judeus para mobilizar o mundo árabe em prol da criação de um superestado árabe que ele dirigisse. Sukarno defendeu o nacionalismo, o internacionalismo, a democracia, a prosperidade social e a crença em Deus, mas suprimiu os partidos, inventou uma “democracia orientada”, adotou uma vida sexual depravada e, extinguindo a minoria chinesa com incessante perseguição, acabou por implodir o sistema de distribuição interna, levando a economia do país ao desastre. E Jawaharlal Nehru, um governante populista, incompetente e discricionário que legou enormes problemas à Índia, como grande estrela de Bandung, denunciou o imperialismo (do Ocidente), as operações anglo-francesas no Suez contra o Egito e os americanos na Coreia, mas declarou que as liberdades civis não faziam falta na Rússia comunista, recusou-se a condenar a invasão soviética na Hungria e negou-se a salvar o Tibet da invasão e colonização pela China.

A hipocrisia terceiro-mundista não foi páreo para o cinismo bruto da Guerra Fria. De uma forma ou de outra, os países protagonistas de Bandung pagaram caro pelas veleidades de seus líderes. Nehru teve que apelar para os imperialistas norte-americanos conterem a China depois da dura derrota que ela impôs ao exército indiano numa fulminante guerra de fronteira. Sukarno viu seu império de mentiras ruir quando o partido comunista indonésio deflagrou uma sangrenta revolta que custou dezenas de milhares de vidas ao país. E o sucessor de Nasser, Anuar Sadat, teve que expulsar assessores soviéticos para se livrar da herança de derrotas e recuperar a dignidade do exército egípcio para fazer a paz com Israel.  

A História não se repete, mas deixa lições. O que mudou a vida de centenas de de milhões de pessoas na Ásia não foi a “violência moral das nações” em nome de alguma platitude de ocasião, mas sim a globalização econômica que criou potências comerciais e tecnológicas no Leste asiático, com repercussões em todo o mundo, cujo maior exemplo é a China.

O BRIC é resultado de uma leitura errada da História, tanto por parte dos seus centros de real vontade política, Rússia e China, que estão fazendo apostas erradas, como de alguns de seus desavisados membros, o principal deles o Brasil, que está bancando o jogo de outros.

É a História, a personalidade dos países, da qual não é possível se desfazer ou alterar ao sabor dos interesses de oportunidade, que explica o Brasil como a maior democracia do Hemisfério Sul e a segunda maior economia do Hemisfério Ocidental. Uma realidade que não pode ser esquecida, tanto pelo Brasil como pelas principais nações do Ocidente, algumas das quais parecem se comprazer em perdê-lo como aliado histórico.

O século XX foi um imenso bazar de ideias exóticas que engendraram a maior tragédia da História. Que as suas velharias fiquem nesse passado não tão distante que ainda nos assombra.