junho 28, 2022

Vida, resposta a muitas questões

  • Sérgio Paulo Muniz Costa

A recente decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos de proibir o aborto suscitou críticas de personalidades do mundo político, segundo as quais isso significaria um retrocesso da dignidade das mulheres. A decisão sobre uma questão que talvez seja das mais polêmicas na atualidade oferece uma boa oportunidade para refletir sobre o que é verdadeiramente avanço, evolução, e o que seja atraso, ou retrocesso, nesse e em outras temas que ocupam as manchetes dos jornais.

A existência humana pode ser entendida como uma interminável sequência de questões às quais se devem oferecer respostas. Tanto umas quanto as outras, questões e respostas, são formuladas a partir de um absoluto: a vida, por razões óbvias.

Por sua vez, nossa espécie se define por ser a única com consciência da vida além da mera sobrevivência. Os antropólogos, ao estudarem os funerais realizados por povos distintamente antigos, logo verificaram que não estavam tratando de morte, mas sim de ritos de passagem de uma para outra vida. Ao lado de avanços tecnológicos, foram os primeiros funerais realizados há dezenas de milhares de anos por hominídeos que os fizeram evoluir como grupos humanos. Foi o que levou à percepção de que “a ordem sobrenatural é até certo ponto modelada nos relacionamentos sociais humanos” e que “inversamente as crenças religiosas validam e regulamentam as ações sociais” (KEESING, 2014, p. 356).

O que parece estar sendo esquecido em inúmeros aspectos da vida social do Ocidente no século XXI não é apenas esse ponto de partida reconhecido pela antropologia cultural. A maior perda da modernidade é a da consciência da vida que permitiu tornarmo-nos civilizados.

Povos com “espaço e recursos finitos em muitas partes do mundo praticavam infanticídio, de ambos os sexos ou de mulheres, afim de restringir o número da população” (Ibid., p. 156), enquanto outros “controlavam a gravidez por meio de abortos e através de técnicas para espaçar os nascimentos […] tais como tabus de sexo após o parto e o prolongamento da amamentação” (Ibid. p. 157), tudo para fazer frente às ameaças de crescimento populacional que pusessem em risco suas comunidades.

Como não poderia deixar de acontecer, a permanente preocupação com a vida sempre se deu pela maternidade, cuja condição básica, a fertilidade, era objeto de inúmeros cultos nas primeiras civilizações. Isso não impediu que, mesmo em sociedades civilizadas, ocorresse o infanticídio, pontual nas formas sacrificiais, ou eugênico, como praticado em Esparta (GRAFTON, 2010, p.901).

Nas primeiras civilizações, a precariedade da vida, a ausência de uma lei moral e a sobrevivência dependente do resultado da guerra constante exigia guerreiros perfeitos e uma rigorosa administração dos meios de subsistência, que, se não justificavam, pelo menos explicavam tais práticas. O avanço civilizacional pelo respeito à vida foi marcante no helenismo, particularmente pelas contribuições de Platão, autor da extravagância da classe dos guerreiros dirigentes, homens e mulheres que procriariam eugenicamente e cujos filhos seriam entregues imediatamente ao Estado, garantindo a vida dos melhores, sobre quem recairiam as responsabilidades da política. Vida que Platão prescrevia em seu último terço ser dedicada à autoeducação, por ele entendida como preparação para a entrada na outra vida.

A revolução do cristianismo traria um novo paradigma às sociedades onde ele fermentou e de onde se expandiu ao mundo. O portador da boa nova não nascera em um palácio e nem em uma casta de excelência. E a sua concepção, que se tornaria um dos dogmas da nova religião, desafiava a moral e a lei que certamente condenariam à morte mãe e filho por uma gravidez não explicada. Com o nascimento de Cristo, a vida foi colocada como valor absoluto, cuja transcendência se firmou na sua paixão e ressurreição. A partir daí se inicia uma nova caminhada civilizacional guiada pela religião, que marcaria a vida do cristão por sacramentos que o acompanhariam em sua existência, do nascimento à morte.

As dificuldades da vida na Idade Média, como observou Johan Huizinga, fizeram das crianças caricatas miniaturas de adultos, tamanha era pressa para que atravessassem aquele período perigoso de suas incertas existências, em que as taxas de mortalidade faziam rarear as populações. No final da Idade Média, a viabilização da vida experimentou outro avanço com o surgimento dos abrigos para crianças, do que a Ospedale degli Innocenti foi, na Florença de 1419, a precursora da ação social em prol das crianças indesejadas que, naquela instituição, eram entregues anonimamente através de pequenas aberturas aos seus novos cuidadores.

A difusão da caridade como valor intrínseco a sociedades distintas fez surgir outras formas de proteção à vida das crianças, como foi o caso em Portugal da Santa Casa de Misericórdia. No Rio de Janeiro do século XVIII, a adoção do sistema de exposição do nascituro na “roda”, um dispositivo que permitia a entrega do recém-nascido à Santa Casa, sem que a mãe ou a portadora fosse identificada, contribuiu para amenizar o espetáculo trágico de inúmeros pequenos corpos boiando na enseada de Botafogo, lançados ao mar para manter as honras das famílias. Com esse artifício, salvaram-se pessoas que haveriam de desempenhar papéis decisivos na história do País e muitas que deram a vida a outras.

Mas não foi apenas pela religião oficial que se protegeu a vida. Ao longo da formação da sociedade brasileira, proliferaram as práticas animistas e fetichistas de indígenas e africanos, muitas até hoje presentes no interior do País, que, metabolizadas em nosso catolicismo, protegem as mulheres grávidas e as crianças, as geradoras e as portadoras de vida.

Nos dias de hoje, em sociedades afluentes, tidas como de alto desempenho, munidas de vastas redes de proteção social, com decrescentes índices de natalidade e cada vez mais laicas, em que desapareceram as ameaças existenciais à sobrevivência humana, vai tomando forma uma eugenia de comodismo e conveniência manipulados pela ideologia que autoriza a interrupção da vida antes do parto, somente após o qual ela é civilmente reconhecida.

Se não bastasse Kant ter apontado que o fim final no uso da liberdade demanda o reconhecimento de um autor moral do mundo, Deus, um pouco de memória social poderia colocar a questão do aborto em uma moldura histórica da qual a fé não pode ser alijada.

A isso uns tantos responderiam apressadamente que a evolução do Ocidente levou à separação do Estado e Igreja, para garantir que ninguém seja obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa a não ser pela lei, esquecendo-se eles que o Estado é laico, mas a sociedade não. Mas ainda assim insistiriam que a questão do aborto e várias outras que polarizam a sociedade não podem ser respondidas pela fé.

Muito bem. Mas que sociedade pode existir sem fé?

Bibliografia sugerida

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala: formação da família brasileira sobre o regime da economia patriarcal.São Paulo: Global Editora, 2003.

GRAFTON, Anthony; MOST, Glenn W.; SETTIS, Salvatore. The Classical Tradition. Cambridge; London: The Belknap Press of Harvard University Press, 2010.

HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média: estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. São Paulo: Cosacnaify, 2010.

KANT, Immanuel. Crítica da faculdade de julgar. São Paulo: ícone, 2009.

KEESING, Roger M.; STRATHERN, Andrew J. Antropologia Cultural: uma abordagem contemporânea. Petrópolis: Editora Vozes, 2014.

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