Tema

O Futuro da Liberdade

Onde quer que exista uma sociedade, os homens têm a possibilidade de inserir a autorrealização da sua natureza individual nas hierarquias de diferenciação social. Mas esta possibilidade é ambı́gua. De um lado, entre os extremos de igualdade e desigualdade total, que não podem existir na realidade, resta um amplo espaço para a configuração histórica, em que as oportunidades de liberdade podem se manter ou também perigar. Por outro lado, e sobretudo, a desigualdade de estratificação social, segundo vimos, supõe também a possibilidade de uma ameaça para as oportunidades de liberdade de todos. Quando se transforma de resultado em pressuposto do desenvolvimento pessoal, pode sua posição preponderante atacar a igualdade de nı́vel e produzir diferenças qualitativas na hierarquia social, o que leva à negação da igualdade civil fundamental para todos. (DAHRENDORF, Ralf. Sociedade e Liberdade. Editora Universidade de Brası́lia: Brası́lia, 1981, p.261-262.)

Artigos

Desinformação: há remédio?

Eris, a Deusa da Discórdia

Atenas, c. 520 a.C.



·      Sérgio Paulo Muniz Costa

À primeira vista, não!

Quanto mais respiramos desinformação em nossa atualidade, maior é a sensação de sua inevitabilidade como mal de todos os tempos e sociedades. A História está repleta de casos de mentiras bem pregadas que produziram resultados impactantes, na guerra, na economia, na política, enfim, na vida social.

Mas não é da mentira que estamos falando. Boatos, intrigas, injúrias e falsificações engendraram pogroms contra judeus na Peste Negra, fizeram o Rei de Portugal matar o seu tio, difamaram Maria Antonieta antes da Revolução Francesa e contribuíram para o desencadeamento de uma revolta militar no Brasil. A mentira tem alvo e objetivo, e se esgota neles quando atingidos, revelando-se, ou não, posteriormente.

A desinformação não é só mentira. A desinformação usa a verdade, ou o percebido como verdade, para prosperar. Como processo, ela modula a verdade a partir da construção de percepções progressivamente expandidas na sociedade ou grupo-alvo. Este é o estagio da desinformação nesta conjuntura de ameaças à democracia, crise civilizacional, espectro de guerra nuclear, insegurança generalizada e nova desordem mundial. Todas, percepções baseadas em acontecimentos e desenvolvimentos muito reais, como eleições, questão imigratória, chantagem nuclear, invasões ou expectativas de invasões, proliferação do crime organizado e desafios à ordem Internacional.

A desinformação tem por matéria prima a verdade, que é percebida como tal pelo seu alvo.

Após o final da Guerra Fria, a Maskirovka russa, entendida como conjunto de medidas de dissimulação e de operações de informações, psicológicas e propaganda para influenciar o resultado de operações militares, tornou-se o principal instrumento da nova forma de guerra, a guerra híbrida, desencadeada pela Rússia em 2014, na Crimeia e leste da Ucrânia. No entanto, desde a sua aplicação na Guerra Fria, empregada pelos soviéticos nos níveis político, estratégico e tático contra o Ocidente, a desinformação  evoluiu extraordinariamente em função de dois fatores: a globalização da informação e a explosão das mídias sociais. E, ultrapassando o emprego militar, deixou de ter como alvo os estados nacionais, as elites dirigentes e as instituições de estado, de defesa em particular.

Hoje, a desinformação visa a sociedade, disseminando sentimentos antagônicos que  magnificam contradições, omissões, fraquezas e erros de governos ou instituições.

Dos tempos da Guerra Fria ela trouxe inalteradas, no entanto, duas características: o cuidadoso ocultamento do verdadeiro promotor da desinformação e o seu modus operandi primário, a divisão. Ficaram famosos nos anos 60 os casos de agentes russos que, encobertos, apresentaram-se como sinceros cidadãos proeminentes ressentidos a diplomatas ocidentais que compartilhavam os mesmos sentimentos e que, aos poucos, foram alocados como agentes inconscientes que operavam sob as ordens dos controladores contra seus alvos.

Nesses casos, não se tratou de recrutamento de agentes por motivos ideológicos, financeiros ou mero desejo de trair. Os principais agentes de desinformação da Guerra Fria eram inconscientes da sua situação, agindo sinceramente, de acordo com as suas convicções, a serviço de seu país ou instituição. E muitos deles foram tomados por operadores do processo, nos dois sentidos, sofrendo ataques dos alvos ou os atacando publicamente, em artigos e entrevistas, aumentando a conflituosidade no país-alvo.

Embora tenham sido encontradas instalações russas dedicadas à desinformação na Guerra da Ucrânia, não é possível relacioná-las ou compará-las ao que acontece hoje, algo anterior e muito maior que se expandiu a praticamente todos os aspectos da vida moderna: comportamento, segurança, política, etc., e que tem uma motivação primária incontestável: polarização, o grande catalisador da desinformação.

Hoje não é o dignatário ou alto funcionário indignado que se torna agente inconsciente do desinformador. É a sociedade, mesmo quando a maior parte dela procura ficar à margem da polarização, porém, perplexa, se vê intimidada pela ação dos extremistas da opinião que promovem a desinformação. Em comum com os tempos da Guerra Fria, os desinformantes inconscientes de hoje também deixam de ser o que são, podendo um grito de guerra conclamá-los:

“Ressentidos do mundo uni-vos!”

Sinceros defensores das liberdades, liberais frustrados com o funcionamento dos parlamentos e com os avanços estatizantes, esquecem seu compromisso umbilical com a democracia. Católicos exasperados com os ataques à sua fé esquecem que são cristãos e flertam com heresias que negam a catolicidade da Igreja Católica. E mais grave, autoridades ao redor do mundo que se dizem preocupadas com a ameaça da desinformação à democracia, defendem o fim da liberdade de informação, o apanágio da democracia.

A desordem internacional, e por que não dizer nacional, nasce em cada um de nós, na medida em que nos damos conta da crescente incapacidade em nos posicionarmos com lucidez e bom senso perante os descalabros que desfilam diariamente diante de nós. A desinformação é hoje a maior ameaça à paz social, à segurança e à liberdade, justamente porque é capaz de se apresentar como defensora dessas garantias e conquistas, fazendo as pessoas deixarem de ser o que são e de defenderem o que acreditam para, inconscientemente, fazerem exatamente o oposto do que acreditam.

Cabe a essa altura voltar à pergunta que dá título a este artigo: há remédio para a desinformação?

Sim, seja o que você é, nas suas convicções, compromissos e lealdades provenientes do pertencimento múltiplo a diferentes instâncias - família, trabalho, religião, instituição, sociedade e nação – sempre animado do sentido de bem comum.

Parece pouco? Tente. Cada um com seu cada qual pode mudar muita coisa. 

 

·      Historiador

 

 

 


Sérgio Paulo - 11/11/2025 21:09 - 100 - 1

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