O editorial da agência Vatican News, de 11 de novembro de 2023, intitulado “The grace of baptism, tradition, and clerical tollhouses”[1] (“A graça do batismo, tradição e alfândegas clericais”) deveria esclarecer a, até certo ponto surpreendente, decisão do Dicastério para a Doutrina da Fé na forma de respostas a Dom José Negri, Bispo de Santo Amaro, a respeito da participação aos sacramentos do Batismo e do Matrimônio por parte de pessoas transexuais e de pessoas homoafetivas.
Surpreendente porque tomada e divulgada em lapso de tempo excepcionalmente curto e em meio a preocupações lancinantes da cristandade com questões graves e urgentes, a decisão, da qual esperavam os católicos maiores esclarecimentos, foi abordada superficialmente no mencionado editorial que, por se tratar de matéria de opinião, pode e deve ser apreciado pelos fiéis para que evitem a “desorientação” a que alude o próprio documento com as respostas do Dicastério[2]. E, em se tratando de matéria de fé, meridianamente garantidos que são os direitos civis a todas as pessoas independentemente de orientação sexual ou gênero, o assunto é crucial para a comunidade de fé a que o Catecismo da Igreja Católica prescreve respeito, compaixão e delicadeza, sem qualquer discriminação injusta[3].
Logo de início, peca o editorial em responder os temores – de “se admitir as crianças de casais homossexuais no sacramento de Batismo faria, tanto o chamado casamento gay como a prática da maternidade substituta moralmente lícitos” – recomendando que os críticos “deveriam considerar o relaxamento das proibições em relação a quem pode servir como padrinho no batismo”.
Redundâncias à parte, o documento do Dicastério, na verdade, não trata apenas de quem pode servir como padrinho de batismo. A 4ª pergunta diz textualmente: “duas pessoas homoafetivas podem figurar como genitores de uma criança que deve ser batizada e que foi adotada ou concebida com outros métodos, como ‘barriga de aluguel’?”. Respondida enigmaticamente com um preceito canônico: “para que a criança seja batizada deve existir a fundada esperança de que será educada na religião católica”, ela gera outras perguntas e deixa em aberto graves questões.
Afinal, se existe “a possibilidade de que haja uma outra pessoa no círculo familiar para garantir a transmissão da fé católica ao batizando”, por que não a instituir como padrinho desde logo? O levantamento dessa possibilidade revela outra: a de que os padrinhos indicados não garantam a transmissão da fé católica, contrariando o que prescreve o Dicastério quanto “à função de padrinho e madrinha, o papel que estes têm na comunidade e a consideração demonstrada por eles em relação aos ensinamentos da Igreja”.
Estendendo-se em citações memoráveis de São Cipriano e de Santo Agostinho sobre a Graça, o editorial reapresenta como recente o compromisso da Igreja com o batismo de crianças, independentemente da fé dos seus pais, como se pudessem ser esquecidos os milhares de certificados de batismo expedidos pela Igreja para salvar judeus da sanha assassina nazista[4], independentemente de qualquer “consideração”. Não é, portanto, o batismo a questão por trás das perguntas encaminhadas ao Dicastério. E tampouco o que as pessoas são nas suas escolhas pessoais. A questão é de fé.
O compromisso da Igreja com a vida, expresso em seu magistério da Criação, da Revelação e da Salvação e assumido incondicionalmente por todo o católico consciente, não deixa qualquer dúvida quanto à gratuidade da Graça transmitida desde o Batismo. O que não significa capitular às demandas de um “contexto pós-cristianismo” (sic), para enveredar em relativismo incompatível com a missão da Igreja Católica. As questões subjacentes à decisão do Dicastério para a Doutrina da Fé precisam ser enfrentadas com coragem à altura dos desafios do tempo em que vivemos.
Na caminhada sinodal, os fiéis católicos devem receber da Igreja as respostas para atravessar em comunhão essa era de inquietude.
[1] The grace of baptism, tradition, and clerical tollhouses – Vatican News
[2] https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_ddf_20231031-documento-mons-negri_po.pdf
[3] Catecismo da Igreja Católica, 2358, p. 611.
[4] Mc DONALD, Thomas. John XXIII and the Jews. The Catholic World Report. April, 3, 2014.