maio 19, 2022

Do Vaticano II ao Sínodo: respostas ao nosso tempo

  • Sérgio Paulo Muniz Costa

É sintomático que, em meio à crise intelectual e espiritual de nosso tempo, a Igreja Católica esteja realizando o que pode vir a ser a mais abrangente assembleia de sua História: o Sínodo 2021-2023.

Foi durante outra crise de época, nos anos 60, que a Igreja realizou o Concílio Vaticano II (1962-1965), no qual ela se dirigiu a todos os homens, expondo-lhes a concepção da sua presença e atividade no mundo (Constituição Pastoral Gaudium et Spes, 1965). Com o Concílio, a sinodalidade, a ideia de caminhar juntos, tomou forma, pois, a partir de 1967, uma assembleia de bispos do mundo inteiro passou a se reunir sob a presidência do Papa para tratar de assuntos da Igreja.

Com o passar do tempo, o processo sinodal se estendeu à vida dos católicos, não somente pela popularização da liturgia e pela participação de leigos. Em 1985, por ocasião do 20º aniversário do encerramento do Concílio, o Papa João Paulo II convocou uma assembleia extraordinária do Sínodo dos Bispos, ao final da qual, os padres sinodais manifestaram o desejo de que fosse composto um catecismo de toda a doutrina católica, hoje uma referência de fé e de moral para a vida de todos os fiéis.

A busca da ordem perdida, ordem social e interior, passa inevitavelmente pelo que transcende nossa vida material. Não por acaso, ao longo da História, foram grandes pensadores sensíveis às coisas do espírito que empreenderam as mais fecundas obras em prol do encontro (ou reencontro) de uma ordem refletida em todos os aspectos da vida humana, inclusive a política.

Sócrates, Platão e Aristóteles, na crise causada pelo colapso da democracia ateniense no século V a.C., e Santo Agostinho, em meio à catástrofe da queda do Império Romano oitocentos anos mais tarde, legaram à posteridade formulações seminais para a fé e a política. Hoje, imersos numa torrente de notícias, fatos e acontecimentos, perdemos a perspectiva da crise que assombra nossa existência.

Nenhum acontecimento foi tão desastroso em termos de destruição e perda de vidas humanas como a Guerra dos Trinta Anos da modernidade, a Primeira (1914-1918) e Segunda Guerra (1939-1945). E nunca tanto esteve em jogo para o destino da humanidade, bastando imaginar como seriam nossas vidas hoje caso o seu resultado tivesse sido diferente.

Fenecendo no século XIX a filosofia, eclipsada pelo positivismo, cientificismo e historicismo, e no XX desaparecendo a História política, substituída pela sua interpretação social, viu-se o Ocidente desprovido dos instrumentos capazes de diagnosticar a crise que sobre ele se abateu séculos depois do fim político de Atenas e Roma.

 E reiterando a tradição de emergirem no caos as grandes contribuições ao pensamento político, foi de dois dos mais importantes pensadores do século da destruição, Claude Lévi Strauss (1908-2009) e Eric Voegelin (1901-1985), refugiados nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, que vieram os alertas sobre a crise espiritual que abalou o Ocidente e cujas raízes são muito mais antigas.

Em sua “exegese” filosófica da Bíblia, Strauss (“Jerusalém e Atenas: algumas reflexões preliminares”) aponta o começo de tudo em nossa civilização, lembrando que “o homem ocidental tornou-se aquilo que é, e é o que é, por meio da reunião da fé bíblica com o pensamento grego”. E no seu vigoroso ensaio “Evangelho e Cultura”, Voegelin denuncia a expulsão de Deus da busca pela razão, o que levou à desaculturação de nossa civilização pela deformação da razão, um mal que só pode ser sanado pela vida milenar da razão.

Vivemos na era de arrogância, um tempo de perda da razão, consequência inevitável da soberba de uma Ciência e de uma História que pretenderam ser a chave da existência. Escrevendo em meados do século XX sobre a crise da qual continuamos reféns, Strauss e Voegelin foram enfáticos sobre a necessidade da volta ao estudo da Grécia Clássica, período no qual convergiam os temas da fé e da política, da razão e da revelação.

Existem, por conseguinte, razões muito consistentes para a Igreja Católica conduzir o presente processo sinodal exercendo o seu magistério como uma continuidade do Concílio Vaticano II, este ocorrido em um momento de tomada de consciência sobre a devastação moral que a guerra e os totalitarismos do século XX significaram. À época, o Papa Paulo VI alertou que “nunca os homens tiveram um tão vivo sentimento de liberdade como hoje, em que surgem novas formas de servidão social e psicológica”.

Sessenta anos depois, o ódio racial, o apelo descarado à guerra e a quimera de um governo planetário sem soberanias continuam, em novas roupagens, a assombrar o mundo, ao que se somam um identitarismo, um racialismo e um panteísmo naturalista que negam a Humanidade e Deus. Não há dúvida de que as formas de servidão se agravaram, porquanto mais sutis e abrangentes, desconstruindo a vida social por toda parte.

Mas para a Igreja encontrar e oferecer respostas a esses desafios ela precisa   caminhar junta, na acepção sinodal, mantendo o seu rumo, como várias autoridades eclesiásticas já alertaram. Rumo, convém aduzir, que não se define apenas pelo ponto de chegada, mas pela partida também, com a memória do caminho percorrido, dos que se juntaram a essa caminhada e das dificuldades vencidas.

Em tempos de sínodo, é crucial que a Igreja se volte para a imensa maioria de seus fiéis que querem caminhar juntos e, tal qual as palavras da Gaudium et Spes, estão “oprimidos pela inquietação, quando se interrogam acerca da evolução atual dos acontecimentos”.

Precisamos todos de respostas ao nosso tempo.

Comments are closed.