- Sérgio Paulo Muniz Costa
Em nossa atualidade há pouco espaço para a discussão sobre como a sociedade em que vivemos se relaciona com a sua forma de organização política, o Estado. Mas não deveria ser assim. A grave crise que o País enfrenta, como de resto as maiores democracias do Ocidente, impõe uma tomada de consciência sobre o que nos acontece, individual e coletivamente.
Neste século pós-ideológico, o pertencimento à comunidade cívica na qual existimos em nossos direitos e deveres é contestado por um identitarismo em que o indivíduo toma o lugar do cidadão. As democracias são abaladas por crescentes níveis de abstenção eleitoral, descrença nas suas instituições e, paradoxalmente, polarização ideológica. Porém, nada disso deveria nos causar surpresa. Como esperar que pessoas que se sentem cada vez menos ligadas por algo em comum participem conscientemente da deliberação de objetivos comuns, ou seja, que pratiquem a democracia?
A culpa por esse estado de coisas é amplamente compartilhada. Num extremo, os que sonham em descontruir o Estado e refunda-lo e à sociedade segundo suas utopias se adonaram de extensas áreas de poder. No outro, os que sustentam o fardo desse aparato cada vez mais pesado e irrealista se revoltam e atacam o Estado que tomam por raiz de todos os males. Não por acaso, opiniões e posições políticas extremas têm discursos semelhantes e, por vezes, nesta era de desinformação, manifestações pretensamente moderadoras escondem radicalismo ainda maior.
Tampouco podem ser isentados a opinião e a posição política de centro. Na verdade, cabe-lhes a maior parte da responsabilidade pela degradação da democracia no Ocidente nas últimas décadas. Mais do que ceder aos ativismos e desprezar os eleitores após as eleições, a grande imprensa e os principais partidos políticos falharam em sustentar convicções, princípios e valores característicos da democracia liberal que é, em última análise, uma prática existencial.
Vivemos uma época de transição, na qual princípios são abandonados sem que outros os tenham substituído. Tempos de inquietude sintetizados na pergunta: transição para o quê?
Não foi a primeira vez que isso aconteceu ao longo da História, nem será a última. Daí ser útil nos socorrermos naquele que a Ciência Política tem por fundador, “o primeiro expectador de todos os tempos, e de toda existência”, Platão (428/7 a.C – 348/7 a.C.), que dos escombros da democracia ateniense, peregrinando entre as tiranias da Magna Grécia, pôde sentenciar que o “Estado surge das necessidades da humanidade” (República, Livro II) e que a justiça nasce do Estado (Ibid.).
Com efeito, a derrocada da democracia ateniense – do seu ápice quando se levantou como um só homem contra a opressão persa, em 490 a.C., até sua transformação em efêmera oligarquia e imperfeita restauração, após a derrota na Guerra do Peloponeso (431 a.C – 404 a.C.) , menos de 90 anos – resultou de injustiças, como a que Atenas dispensou à pequena Melos, descrita no Diálogo imaginado por Tucídides (460/455 a.C. – ?), e a da condenação do mais justo dos justos, Sócrates, em 399 a.C., pelo crime de pensamento, conforme retratado por Platão em Apologia.
Uma democracia pode, indistintamente, condenar brutos e sábios, desde que com justiça. E enfrentar ou apoiar outros estados, sempre com coragem, moral, antes de mais nada. Porém, mais do que a força para impor a pena ou fazer a guerra, será a justiça que distribui a seus cidadãos e com que trata as outras nações que a fará forte. Julgar a justiça que o Estado pratica é um caminho seguro para a democracia no Ocidente, aí muito bem incluído o Brasil, atravessar a crise que a ameaça.
Afinal, uma vez perdidos os fins, está decretado o final dos mais promissores ideais.